A Mitologia e o Vinho

A bebida, em especial o vinho, sempre esteve associada às mais perfeitas realizações e aos momentos mais degradantes da espécie humana. Pela sua capacidade de alterar o comportamento, foi endeusada e condenada, considerada saudável ou um caminho certo para a ruína. Mas, apesar dos pontos de vista variáveis, diversas civilizações tiveram deuses que estavam diretamente associados a bebidas alcoólicas, dentre os quais o mais conhecido até hoje, Baco, ou Dionísio, o deus grego do vinho.

Os Vedas, textos religiosos indianos, que estão entre os mais antigos conhecidos, falam de um deus Soma, o terceiro no panteão védico, que era associado a uma bebida safrada que, ingerida, “conduzia o homem aos deuses”. Atualmente, se acredita que essa bebida, que também recebia o nome de soma, fosse o suco fermentado de uma planta chamada “asclepias acida”. No entanto, a “receita” dessa bebida magnífica se perdeu, e os indianos substituíram a ingestão do soma por caminhos bem mais difíceis, tais como a prática da ioga, a meditação e o abandono dos bens materiais.

Para os egípcios, grandes bebedores de cerveja, entretanto, o vinho é que era considerado uma dádiva dos deuses, mais especificamente, de Osíris, o deus que havia ensinado a agricultura aos homens, e que foi assassinado e desmembrado por seu irmão Set.

O vinho egípcio era produzido na região do Delta do Nilo e, tal como os vinhos atuais, era devidamente rotulado. Foram encontradas, na região de Remesseun, no Egito atual, jarras de vinho quebradas, com inscrições como “vinho doce”, ou “bom vinho da oitava vez”.

Apesar do cuidado dos egípcios em rotular seus vinhos e guardá-los, seriam os gregos que conseguiriam associar, de forma permanente, a figura do vinho à de um deus. Dionísio, também chamado de Baco, não era um deus introdutor da agricultura, como Osíris, mas sim um deus específico do vinho.

Dionísio era filho de Zeus, o deus supremo, e de Sêmele, filha de Cadmo, rei de Tebas, conhecida por sua beleza perfeita. Zeus, que era dado a escapadelas matrimoniais, se apaixonou por Sêmele, e a engravidou. Hera, esposa de Zeus, não deixou por menos: matou a rival, mas não conseguiu evitar que Zeus salvasse o filho, que entregou às Ninfas (divindades que povoavam os bosques) para que o criassem.

Assim, Dionísio foi criado em uma caverna, onde cresceu, cercado de todos os mimos que cabiam a um deus. Na entrada dessa caverna havia uma vinha, da qual, já adolescente, Dionísio um dia espremeu os cachos maduros. Ao provar o líquido que obtivera, ficou encantado com suas qualidades: espantava a fadiga, alegrava, fazia desaparecer os problemas. Estava inventado o vinho.

Animado com a sua descoberta, Dionísio convidou as ninfas e todas as divindades da floresta para o provarem. Todos ficaram muito alegres (como era de se esperar), e fizeram uma grande festa, para honrar o deus que havia inventado a única bebida capaz de dissipar os aborrecimentos. Dionísio, entretanto, não se contentou em embebedar ninfas, sátiros e faunos. Achou que sua bebida deveria ser divulgada entre os mortais e, com o seu grupo de amigos saiu pelo mundo afora, ensinando a cultura da vinha e a arte de preparar o vinho. Suas lições, porém, tinham duas faces: aos amigos ensinava que bebendo o vinho comedidamente poderiam encontrar a alegria; aos inimigos, provocava um furor selvagem e um grande mal-estar (que, provavelmente, era o que atualmente se chama de “ressaca”).

As andanças de Dionísio (e seu barulhento cortejo) pelo mundo grego e Ásia Menor, ensinando a fazer o vinho, não lhe pareceram suficientes. Um dia, em um excesso de animação, resolveu juntar todos os povos da Grécia, Lídia e Frígia e partir em excursão para a Índia. Quando chegou àquele país, foi recebido com caçoadas pelos indianos, que acharam que o confuso exército de Dionísio não os poderia vencer. Estavam enganados: Dionísio combateu-os longamente, e obrigou-os a reconhecê-lo como a um Deus.

E assim os indianos, que adoravam o deus Soma (entre outros milhares) viram-se obrigados a reconhecer a supremacia do deus do vinho — pelo menos na versão grega da estória depois dessa vitória, Dionísio sossegou, recolhendo-se aos céus, após ver o seu culto espalhado entre toda a humanidade.

Marcelo Boccaletti

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